domingo, 5 de maio de 2013

Posso me Identificar? 10 anos da Chacina do Borel

Fonte: http://www.blogger.com/blogger.g?blogID=9194389734967535015#editor/target=post;postID=407484985855834220

Posso me identificar?

Há 10 anos, abril de 2003, quatro jovens foram executados no Morro do Borel. Os autores dos disparos, que atingiram as costas e as nucas das vítimas, foram policiais militares. Não há pena de morte instituída no Brasil; a execução de qualquer indivíduo, mesmo aqueles à margem da lei, é criminosa e indefensável. Mas neste caso vale destacar o perfil dos mortos, até para sublinhar o tamanho da tragédia: um era taxista; o outro, pedreiro; um terceiro, estudante; e o quarto sequer morava no Brasil, estava no Rio apenas para o alistamento militar obrigatório. Nenhum dos quatro era ligado às atividades do tráfico. Morreram sem poder se identificar.


Olhando dez anos atrás, o crime ainda choca. Mas do choque, da indignação e da revolta nasceu um movimento: "Posso me identificar?". Capitaneado por uma das mães sobreviventes da chacina e abraçado por toda uma comunidade, o movimento ganhou o país e outros interlocutores na sociedade. Talvez seja  o primeiro grande momento em que a sociedade carioca brada contra os chamados autos de resistência. Era um grito contra o absurdo do assassinato cometido pelo próprio Estado e também contra o absurdo dos jovens que não puderam sequer se identificar, não puderam ao menos dizer: "Ô, seu moço, sou trabalhador. Tava batendo uma laje ali no Terreirão e agora to voltando pra casa. Tá aqui minha identidade, abre minha mochila para ver meu caderno de aula. Quer que eu pegue o diploma lá em casa para provar?"

Passados dez anos, as dores e feridas continuam latentes. Mas algumas vitórias também foram contabilizadas neste caminho. Talvez a mais significativa seja sutil: o respeito e reconhecimento à memória do que de fato aconteceu. Quantos são os meninos que morrem em vielas de favelas cariocas e, taxados como bandidos, assim figuram nas manchetes dos jornais e no imaginário coletivo? No caso do Borel, conseguiu-se reverter isso - ainda que nos primeiros dias, os veículos de comunicação tenham comprado a versão oficial, a verdade prevaleceu e a memória de Carlos Alberto, Carlos Magno, Everson e Thiago enquanto jovens trabalhadores e estudantes, inocentes executados pelo Estado, foi preservada.

Outra pequena grande vitória: desde o início deste ano, a Polícia Civil do Rio de Janeiro determinou o fim do registro de autos de resistência nos casos de homicídios cometidos por policiais. A expressão foi abolida do vocabulário oficial dos boletins de ocorrência do estado do Rio - e este é um reconhecimento pelo próprio Estado dos abusos e execuções cometidas que ficam escondidos sob este véu do auto de resistência.

Alguns reveses também foram coletados no caminho. Nenhum dos cinco policiais acusados do crime está preso, nem mesmo o que foi formalmente condenado pela Justiça. O Brasil, infelizmente, ainda não sabe lidar bem com essas questões (vide a barbárie do Carandiru, julgada apenas 20 anos depois). 

Na última semana, o Borel fez memória da tragédia. Mas memória talvez não seja a expressão mais apropriada, porque diz respeito ao passado. Um passado que, cruzes-bate-na-madeira-mangalô-três-vezes, a gente não quer que se repita. Só que o ato não se propôs apenas a recordar um pretérito mais que imperfeito. Foi além e também denunciou o cenário presente, pois são muitos os que ainda morrem sem poder se identificar, sem ter a chance de defesa. Pelas armas oficiais do Estado.

O Estado brasileiro segue violando diária e diuturnamente os direitos das pessoas, sobretudo as mais pobres. E nem vou entrar em outros méritos, nem falar dos que morrem (sem se identificar!) nas filas dos hospitais, dos que são removidos sem o diálogo que a lei exige, dos que são desrespeitados e pisoteados em suas culturas tradicionais, daqueles a quem são negados os serviços e bens mais básicos para uma vida adequada; atos que também se constituem como graves violações de direitos (humanos!).

Mas quero me ater somente a esse direito mais básico, residual, primeiro, que é o direito à vida (mesmo que indigna, estou falando apenas mesmo da vida, do sopro, de permanecer respirando, o coração batendo). Quão grande é o número dos que ainda morrem sem poder se identificar? Quantos são os diálogos ainda hoje somente possíveis entre o pescoço e a forca, entre a bala do revólver e a nuca nua e preta? Os dados estão aí: em 2010, cerca de 50 mil pessoas foram mortas por arma de fogo no país: a maioria jovem, a maioria negra, a maioria pobre. Quão cruel ainda é a realidade para milhares de jovens nos guetos do Brasil!

Uma frase de Dalva, mãe que transformou seu luto em luta, sempre me impacta. Diz ela que se não estivesse lutando por justiça, estaria mais morta que seu filho. O grito feito em nome dos quatro jovens do Borel continua atual e deve também ser o nosso. "Ei, seu moço, posso me identificar? Eu sou o Jader, jovem, preto, estudante, e desse jeito não dá para continuar!"

 
Abaixo um pequeno documentário, de dez minutos, sobre a chacina, dez anos depois. Para quem quiser saber mais sobre a história...
 

Escrito por Jader Moraes

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